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NARCISISMO E A DIGITALIZAÇÃO DOS CORPOS: A PERFORMANCE COMO ARMADILHA PARA O SELF AUTÊNTICO.

Giselle Claudino Barbosa dos Santos

Sandra Mara Volpi


RESUMO


Este trabalho aborda a relação entre narcisismo, a digitalização dos corpos e o desempenho social, refletindo sobre como essas questões impactam a expressão autêntica do self. A partir de uma análise da Psicologia Corporal Reichiana, especialmente o conceito de couraça, e do impacto das redes sociais no comportamento humano, é discutido como a busca por validação e a construção de uma imagem idealizada afetam a identidade, o corpo e o bem-estar emocional. O trabalho explora como o desempenho, tanto no ambiente digital quanto no social, se configura como uma armadilha para o self genuíno, e como o narcisismo surge como uma defesa psíquica contra vulnerabilidades emocionais. Conclui-se que a superação dessa armadilha passa pela flexibilização das tensões corporais e pela reconexão com a autenticidade emocional, a partir de processos terapêuticos que promovem a autorregulação e a autoexpressão verdadeira.


Palavras-chave: Autoexpressão. Digitalização dos corpos. Narcisismo. Negação do self.


INTRODUÇÃO

A escolha de investigar a performance como aprisionamento do self autêntico e a influência do Narcisismo nas redes sociais não é apenas uma questão teórica para mim, mas uma reflexão profundamente enraizada na minha trajetória pessoal e profissional. Ao longo da minha formação como terapeuta e fazendo uso das redes para me comunicar com amigos e pacientes, percebi que a forma como nos expressamos e nos mostramos ao mundo está frequentemente condicionada por expectativas externas, moldadas por padrões de comportamento que não contribuem para uma expressão espontânea e autêntica. Minha história de vida, marcada por momentos em que essa livre expressão foi questionada ou reprimida, me levou a buscar formas de autoexpressão mais verdadeiras, uma caminhada que ainda está em curso.

Esse tema toca diretamente em questões que envolvem a autoexpressão e a autenticidade, dois pilares que fundamentam minha prática terapêutica e minha vida pessoal. Reconhecer e aceitar as partes mais genuínas do self, longe das máscaras sociais ou das performances que realizamos para sermos aceitos, é um desafio constante, especialmente em um mundo onde as redes sociais potencializam o narcisismo ao promover uma distorção da própria imagem, e de quem deveríamos ser. Nesse contexto, o desejo de ser visto e admirado se sobrepõe à necessidade de ser verdadeiramente conhecido. O objetivo deste trabalho é examinar como o narcisismo digital e a performance social afetam a expressão autêntica do self.


O DESEMPENHO COMO ARMADILHA PARA O SELF AUTÊNTICO

A ideia central que proponho aqui gira em torno da noção de desempenho como uma armadilha para o self autêntico. Ao vivermos uma era onde a exposição e a curadoria de uma imagem idealizada se tornaram parte do cotidiano, torna-se cada vez mais difícil distinguir o que é real do que é construído. O desempenho, nesse sentido, não só aprisiona o sujeito, mas também limita suas possibilidades de se conectar consigo mesmo e com os outros. Esse fenômeno é amplificado pela digitalização dos corpos, um conceito que explora como as redes sociais alimentam a necessidade de reconhecimento superficial, desviando o foco da experiência genuína e da autorregulação emocional.

Han (2010) aprofunda essa discussão ao descrever a contemporaneidade como a sociedade do desempenho. Para ele, vivemos num tempo em que o sujeito já não é mais coagido por uma autoridade externa. Han (2010, p. 17) afirma que a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais de “sujeitos da obediência”, mas sujeitos do desempenho e da produção. São empresários de si mesmos. Nesse sentido, se vê constantemente impelido a superar a si mesmo – a ser, o tempo todo, mais produtivo, mais visível, mais desejável.

 Esse imperativo do desempenho se manifesta com intensidade nas redes sociais, onde o eu se transforma em projeto de marketing pessoal. O sujeito se torna, como Han (2010) descreve, empreendedor de si mesmo, reduzindo sua existência à lógica da eficiência e da visibilidade. O narcisismo digital nesse contexto é visto atravessando o corpo e colocando-o refém não de espelhos, mas de vitrines – e o corpo, as emoções e até a intimidade passam a ser moldados como produtos a serem exibidos. O sujeito se afasta da sua espontaneidade quando entra na lógica sufocante de desempenhar, quando edita, filtra e publica esperando curtidas. A autenticidade se esvazia quando é medida por métricas externas. O corpo, nesse cenário, deixa de ser espaço de expressão vital e sensível, tornando-se um palco onde representa o que socialmente está sendo desejado.


O NARCISISMO COMO DEFESA E COURAÇA

No pensamento de Lowen (1983), o narcisismo é mais do que uma simples busca pela admiração ou pela validação externa; ele enxerga como uma condição mais profunda, uma defesa psíquica que emerge em resposta a dinâmicas familiares disfuncionais e a pressões culturais. É ampliado pela cultura ocidental pós-moderna, que valoriza o sucesso, a imagem e a aparência externa acima da autenticidade emocional, o que se torna um ambiente propício para o desenvolvimento de traços narcísicos, considerando que as pessoas são estimuladas a esconder suas vulnerabilidades e a projetar uma imagem idealizada de si para serem aceitas.

Reich (2004), com quem Lowen estudou, introduziu o conceito de couraça, que se refere a tensões crônicas no corpo que funcionam como defesas psíquicas e emocionais. Essas tensões são contenções que impedem a circulação livre das correntes vegetativas do corpo, mantendo assim, uma identidade energética, uma forma congelada de funcionamento. Essa identidade é construída ao longo do tempo como uma reação ao sofrimento emocional e à repressão de sentimentos. É uma resposta de defesa do corpo que visa proteger a pessoa da dor e do medo. No caso do Narcisismo, a couraça narcísica serve para conter a vulnerabilidade e o medo da rejeição, resultando na construção de uma imagem idealizada de si.


O NARCISISMO DIGITAL E A ERA DO DESEMPENHO ONLINE

Além de acreditar que o distúrbio narcisista é um produto da cultura ocidental, Lowen (1983, p. 166) também crê que “O indivíduo narcisista é fruto de uma situação familiar infeliz, na qual a criança é seduzida para um relacionamento especial com um dos pais. Através da intimidade fornecida por essa relação, a criança é exposta a sentimentos adultos e à sexualidade adulta, resultando em sua superestimulação.” Dessa forma, o narcisista se concentra fortemente na realidade externa, com relativa exclusão do mundo interno e do sentimento. Em resposta a essa condição, cria-se um mecanismo de defesa contra a vulnerabilidade, o medo do fracasso, da rejeição e da perda de controle.

Ele constrói uma imagem de si que é idealizada, grandiosa, com o objetivo de ocultar sentimentos profundos de inadequação e vazio. O desempenho nesse contexto seria a criação de uma fachada, uma máscara de superioridade, para esconder sua fragilidade e o medo de ser visto como insuficiente. A pessoa, em vez de confiar na expressão espontânea do seu ser, se baseia em fontes externas de validação, como as redes sociais, flertes, elogios, conquistas, para formar sua autoestima. A função desse comportamento é defender a instabilidade emocional interna. Ao manter essa imagem perfeita e superior, o narcisista evita o confronto com suas inseguranças e medos profundos, especialmente o medo da rejeição e do não pertencimento.

Segundo Lowen (1983, p. 165), “A superestimulação acontece em todos os tipos de lares. O rádio e a televisão permanecem ligados por longos períodos de tempo. Parece que necessitam dessa estimulação; ela aumenta a dose de excitação que parece faltar em suas vidas.” Ele destaca como os dispositivos tecnológicos de sua época, permaneciam ligados constantemente, oferecendo uma dose de excitação. Essa excitação, segundo ele, serve como uma distração que ajuda as pessoas a se afastarem de si mesmas e de seus sentimentos mais profundos. Elas se envolvem em um ciclo constante de estímulos externos, evitando o contato com suas próprias emoções e a realidade interna.

Está claro que esse fenômeno que Lowen (1983) descrevia na sociedade de sua época, se expandiu drasticamente na era pós-moderna com o surgimento das tecnologias digitais e redes sociais. Hoje, a quantidade de informações que recebemos é imensa e chega em uma velocidade avassaladora. Somos constantemente bombardeados por notícias, atualizações, imagens e vídeos. Nesse cenário, muitas pessoas aprenderam a se “anestesiar”, a não serem afetadas por esses estímulos – um comportamento que reforça a couraça emocional e muscular.


UM CORPO SUPERESTIMULADO NÃO FAZ REVOLUÇÃO

Outra reflexão proposta por Lowen (1983) é sobre o impacto da alta produtividade e do ritmo no mercado de trabalho. A exigência constante por fazer mais, ser mais eficiente e produtivo leva as pessoas a um estado de atividade contínua. Há tanto para ser feito e a possibilidade de repousar causa culpa, pensar e contemplar é visto como uma inutilidade, não há espaço para o ócio, que pode ser também potente e criativo. Como ele afirma (1983, p. 166), “Os jovens de hoje têm sido chamados de geração da ação, subentendendo uma virtude em sua constante atividade. Seu desassossego, entretanto, resulta da incapacidade para ficarem quietos. Eles só se sentem vivos quando estão fazendo, mas suas ações constituem uma defesa contra serem e sentirem”.

Essa visão de Lowen (1983) se reflete claramente na sociedade contemporânea, onde até mesmo o repouso e a contemplação são transformados em mais uma forma de desempenho. Como apontado, o simples ato de descansar ou buscar momentos de quietude acaba se tornando mais um ponto de pressão social, pois muitas vezes é exibido como um elemento de uma vida “perfeitinha”. Há uma cobrança para mostrar nas redes sociais que se tem tempo para contemplar, meditar ou relaxar, o que esvazia o verdadeiro potencial desses momentos e os transforma em mais um item na lista de tarefas para se realizar.

Nota-se que alguns trabalhadores jovens se movimentam na vida como se estivessem em uma competição, pois tudo em suas vidas está subordinado a uma urgência de sucesso. A normalização da superestimulação tornou-se o modo de vida mais desejável, com as pessoas se adaptando sem serem capazes de dispensá-la. Isso leva ao jogo narcísico, ao embotamento interior, ao perigo real.


A ILUSÃO DA PSICODINÂMICA NARCÍSICA

O jogo narcísico no mundo comum se mantém na promessa de que uma imagem idealizada pode salvar de uma realidade de dor e medo. Reich (1954, p. 4) afirma que:


Escapar de uma armadilha é possível. Mas para alguém sair de uma prisão, primeiro precisa reconhecer que está numa prisão. A armadilha é a estrutura emocional do homem, sua estrutura de caráter. Pouco adianta elaborar sistemas de pensamento sobre a natureza da armadilha, quando a única coisa para sair da armadilha é conhecê-la e encontrar a saída. Todo o resto é inútil.



Quando nos condicionamos a seguir com as tendências ou padrões estabelecidos – seja no modo de agir, vestir, pensar ou se comportar – entramos em um processo de repetição de fórmulas que não correspondem ao que realmente somos. As redes amplificam essa pressão, pois a visibilidade e a aprovação tornam-se os parâmetros de valor. Isso cria a armadilha: Ao desejar ser aceito, adoto uma performance que não traduz a realidade interna, a expressão que vem do cerne. O cerne, nosso núcleo não corrompido, aquele espaço dentro de nós que é capaz de se conectar com as emoções, com os impulsos vitais e com a realidade do nosso interior fora das prisões.


A ANÁLISE COMO PONTO DE PARTIDA PARA A SAÍDA DAS ILUSÕES

Quais são as motivações que nos fazem permanecer no jogo? Qual a realidade de dor e medo que a couraça condena quando desempenhamos? Essas são questões centrais no processo terapêutico, contudo, há uma defesa típica do narcisismo que merece uma atenção na análise, a negação do sentimento. Lowen (1983, p. 52) elucida esse conceito ao afirmar:

Um sentimento ou sensação constitui a percepção de algum movimento ou evento corporal interno. Se este não acontecer, não haverá sensação nem sentimento, pois nada há para perceber. Se uma pessoa deixa um braço pender imóvel durante cinco minutos, ele ficará adormecido e ela não sentirá seu próprio braço. Para recuperar a sensação, a pessoa terá que movimentar seu braço. Assim, pela inibição do movimento, é possível a uma pessoa amortecer-se. Outra maneira de cortar o acesso de impulsos e ações à consciência é bloqueando a função da percepção. Este é o mecanismo pelo qual os sentimentos são negados.

A negação do sentimento é um mecanismo de defesa que impede o indivíduo de se conectar com suas sensações e emoções reais. Lowen (1983) explica que, quando bloqueamos nossos movimentos ou percepções, também bloqueamos o contato com esses sentimentos. Isso pode ser comparado à sensação de dormência que ocorre quando deixamos um braço imóvel por muito tempo: sem movimento. Não há sensação. Da mesma forma, quando restringimos nossas emoções e ações, perdemos a capacidade de sentir verdadeiramente.

Quando Lowen aborda o narcisismo como um bloqueio de percepção, ele sugere que o indivíduo perdeu o contato com suas sensações corporais e emocionais, criando uma barreira perceptiva que impede o acesso a sentimentos genuínos. Quando fazemos contato com as motivações, com as teses que sustentam o caráter narcísico, expandimos nossa percepção sobre a realidade vivida no aqui e agora, abrindo caminho para desconstruir e revelar o que está oculto. Ao trazer essas questões à luz da consciência, é possível perceber como as armadilhas funcionam e como não cair nas ilusões de uma falsa sensação de potência que a validação externa promete.

Reich (1933) também abordou esse fenômeno ao afirmar que a reconquista desse movimento natural e vital exige um processo de flexibilização da couraça muscular crônica, um trabalho terapêutico de Vegetoterapia Caracteroanalítica. Ele afirma que:

A diferença fundamental entre a análise de um sintoma e a de um traço de caráter neurótico consiste no fato de que, desde o princípio, o primeiro é isolado e objetivado, enquanto o segundo deve ser separado continuamente na análise, de maneira que o paciente tenha para com ele a mesma atitude que tem em relação a um sintoma. Embora raramente isso aconteça com facilidade, há pacientes que demonstram muito pouca inclinação para ter uma visão objetiva de seu caráter. Isso é compreensível, porque se trata de destruir o mecanismo de defesa narcísico e de trabalhar a angústia da libido que está ligada nele. (Reich, 1989, p. 76).

A couraça tem uma função de proteção que é vista como fundamental para sobrevivência emocional. A quebra do aparelho narcísico mencionado por Reich se refere à maneira pela qual o indivíduo tenta proteger sua autoestima e a imagem de si mesmo. O narcisismo, nesse contexto, age como uma blindagem emocional, levando o paciente a negar ou distorcer aspectos de seu caráter que são dolorosos ou ameaçadores. A análise do caráter busca, portanto confrontar esses mecanismos e trabalhar a angústia associada a eles, permitindo que a defesa desarme e ele conecte com aspectos mais autênticos.

A cura acontece quando a pessoa é capaz de superar a defesa narcísica e de se permitir viver de forma mais autêntica, abraçando sua vulnerabilidade sem o medo constante do julgamento e da rejeição. No contexto terapêutico possibilita-se a desconstrução que envolve ajudar o paciente a estabelecer contato com seu corpo, recuperar seus sentimentos suprimidos e reaver sua humanidade perdida. Tal abordagem implica trabalhar para reduzir as tensões e a rigidez muscular que refreiam os sentimentos da pessoa. A chave é a compreensão: ressignificar suas vulnerabilidades e acessar uma autoimagem mais realista e integrada.

A digitalização dos corpos afeta de maneira significativa a qualidade das relações. Portanto, é importante destacar que, além do trabalho terapêutico como agente de transformação profunda, a educação tem um papel importante na prevenção do narcisismo. A relação que existe com os dispositivos tecnológicos precisa ser mais consciente, para promover formas mais saudáveis de autoestima. Políticas públicas são fundamentais para combater o uso indevido das redes no que diz respeito à proteção e o bem-estar psicológico, principalmente de crianças e jovens adolescentes.


Referências


HAN, B-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2010.


LOWEN, A. Narcisismo: a negação do verdadeiro self. São Paulo: Cultrix, 1983.


REICH, W. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


REICH, W. O assassinato de Cristo. São Paulo: Martins fontes, 1989.


AUTORA E ORIENTADORA

Giselle Claudino Barbosa dos Santos / Maceió / AL / Brasil

Bacharel em Administração. Cursando Especialização em Psicologia Corporal, com habilitação para atuar como Terapeuta e Analista Corporal de abordagem reichiana e bioenergética, pelo Centro Reichiano, Curitiba/PR.


Sandra Mara Volpi / Curitiba / PR / Brasil

Psicóloga (CRP-08/5348) (PUC-PR), Analista Bioenergética (CBT) e Supervisora em Análise Bioenergética (IABSP). Especialista em Psicoterapia Infantil (UTP). Psicopedagoga (CEP-Curitiba). Mestre em Tecnologia (UTFPR). Especialista em Acupuntura clássica e Método Ryodoraku (eletrodiagnóstico computadorizado de medição da energia dos meridianos do corpo). Diretora do Centro Reichiano, Curitiba/PR.

 
 
 

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